VACÍO / SOLO PODEMOS
MIRAR LOS OJOS DE UNA PERSONA A LA VEZ, de COMPAÑÍA DE DANZA PERIFÉRICO
“É necessário se emprestar aos outros e dar-se a si mesmo.”
(Michel de Montaigne)
“Já não és mais capaz de fazer o que mais queres: criar sobre si mesmo. Isso é o que mais queres, esse é seu ardente desejo.”
(Friedrich Nietzsche)
Em seu Ser Crâneo, Georges Didi-Huberman disserta sobre a poesia escultórica de Giuseppe Penone. Para ambos “o artista é um inventor de lugares”, ou ainda, aquele que ao retirar nossos corpos do espaço normativo, cria a partir desse um novo lugar. O tango em Vacío/Solo podemos mirar los ojos de uma persona a la vez da Companía de Danza Periférico com direção de Federica Folco acontece muito próximo de nós, quase nos atingindo fisicamente. Essa iminência hipnotiza e nos expõem para nós mesmos de forma bastante visceral, permitindo que nos reconheçamos como o corpo paradoxal de José Gil e, por conseguinte, que criemos um novo espaço. Corpo-espaço, de sujeito interior e exterior ao mesmo tempo. Sujeito viscoso que se fabrica com a experiência externa quando tornada interna. Corpo que se apropria da construção do outro para construção de seu self pós-estruturalista. Corporeidade em pulsão no agora da potência de ser.
Um corpo contemporâneo com memória da matéria e consciente das reminiscências reconhecidas como presente-futuro num espaço tempo no qual não existe ontem ou amanhã. Um corpo que deseja afetar o outro pela necessidade primeira e última de ser afetado por si e pelo outro. Um ser que reconhece que vivemos em constante performatividade e busca não só a fuga mas também o encontro-descoberta a partir da performance.
O caráter catártico é reiterado pela utilização de figurino composto por roupas bastante comuns passíveis de um fácil reconhecimento. A falta de cenário implica na dualidade não lugar/qualquer lugar, facilitada pela iluminação discreta e pontual. Os sons ficam por conta de uma guitarra modificada e explorada em seus ruídos e não ruídos além da participação integral do público e seu movimentar. O rugido da cadeira, o espernear de um bebê, um espirro, uma tosse, a nossa respiração. Logo, o exterior tornado interior e simultaneamente expelido de volta – não para um mesmo lugar, mas para um outro já transformado e em constante mutação-.
A melancolia do tango é substituída pelo desespero do momentâneo. A sensualidade mascarada dá lugar ao erotismo efêmero. Os pequenos acontecimentos são amplificados e as subjetividades interpenetradas. Os gestos se mostram singulares e dependentes de conforto e do confronto. A beleza e crueza do estado nascente do toque irrompe o presente e nos choca, obrigando-nos a decidir entre entrar no jogo ou fugir dele. A fuga se choca com a permanência. O olhar com a presença. A corporeidade com a ausência.
A fuga e a desistência me parecem bastante presentes em Vacío. O encontro quando perto de se tornar insustentável dá espaço a fuga, quando, no entanto, penso que a persistência levaria a explosão e consequente transformação. Ambas – explosão e transformação – evitadas, visto que o medo é tão intenso quanto o tesão. A atração que o outro provoca é proporcional ao temor de sua possível indiferença e/ou renúncia. A insistência não me parece ser uma questão aqui, mas a multiplicidade de toques e encontros. Tema sobre o qual o homem urbano contemporâneo em urgência pelo outro, mas esquivo para consigo não pode mais evadir. A insistência – ou não insistência – nos decreta frágeis, adjetivo o qual nos é ensinado desde cedo importante não agregar. Mas o que é a fragilidade senão o nosso pedido por cuidado, carinho, amor. A necessidade por atenção. A necessidade de ser percebido. O que realmente queremos quando tocamos o outro? Talvez não estejamos em busca apenas por outrem, mas também – e principalmente – em uma busca interna, velada e torturante por nós mesmos – ainda em construir-se -.
Ao tentar agenciar desejos desse corpo paradoxal: É possível ignorar a presença humana? O que significa tocar o outro? E repudiar o toque? Quando tocamos o outro incitamos a resposta, mas não a impomos. O que significa não ser tocado de volta? É possível manter uma obra em obrar, aberta a novas pulsões? O que é o vazio? É possível transformar o vazio da carne em terra e nessa terra encontrar a memória do devenir? Somos capazes de criar constantemente sobre nós mesmos? Somos capazes de abrir tudo que é carne para a vertigem de ser carne?
No prólogo de Movimento Total, José Gil traz uma fala de Merce Cunningham: “Perante o vazio, (o bailarino) está só, de uma solidão que o arranca para fora de si. Está só e fora de si. O seu gesto vai na direção dos outros corpos. Como dançar esse gesto? Como fazer? Fazendo-o.” Ainda, Giuseppe Penone nos diz” para se esculpir realmente a pedra, há de ser rio”. Vacío/Solo podemos mirar los ojos de uma persona a la vez nos leva a reconhecermos a pedra, cujo grito não tem altura. Vacío é frottage; capta os traços mais antigos e menos visíveis, faz visível fósseis de gestos e desenvolve sua intimidade. Contudo ainda não é rio. Talvez essa seja a nossa deixa. Já sabemos que o estado nascente é vida e morte concomitantemente. Só falta criarmo-nos rio!
por Ana Elisa Lidizia
Foto: © CLAP