Singspiele, de MAGUY MARIN / DAVID MAMBOUCH / BENJAMIN LEBRETON

Retratos de indivíduos/ SINGSPIELE. Uma concepção de Maguy Marin. Que foi aluna de Maurice Béjart no Mudra e no Chandra, onde criou suas primeiras coreografias. E que fundou o Ballet – Théâtre de L’Arche em 1978, que em seguida se transformaria na sua Companhia de Dança Maguy Marin. Também dirigiu o Centro Coreográfico Nacional de Rillieux-la Pape, em Lyon, onde sua Companhia foi residente de 1998 a 2011. Hoje ela está de volta á Toulouse, cidade onde nasceu, e lá continua trabalhando.

 

Aqui no Brasil, no Panorama de Dança 2014, também é mestra de Lia Rodrigues, que apresentou “Pindorama” em março deste ano, na Maré, onde “trata das fragilidades humanas e bagunça com as emoções” (cf. Adriana Pavlova, “O Globo”, 20/03/14).

 

No Teatro Carlos Gomes, em única apresentação: um cenário sóbrio, o palco já aberto com uma espécie de paredão ao fundo iluminado. Parecia uma tela cinematográfica branca, onde simetricamente estavam afixados três cabideiros com roupas penduradas em tons preto e branco, um pouco de azul e marrom… logo abaixo destes cabides, também 3 cubos de madeira brancos, apoiados em cima de uma passarela estreita que percorria longitudinalmente a cena. Todo o palco preto, uma iluminação constante sobre aquele muro \ paredão, que nos remetia a uma vitrine, expondo um caminho largo e suspenso, uma espécie de parapeito de uma grande janela para o mundo.

 

Tela, moldura, fotografia, imagens… logo uma figura humana se destaca, usando uma  máscara, que encobria  todo o rosto, tipo um  retângulo formado por  uma fotografia em preto e branco e que mostrava  imagens de rostos masculinos ou femininos, ora adultos, ora jovens …que seriam retiradas como folhas de papel, uma a uma, marcando uma incessante aparição de tipos humanos mais diversos, conhecidos ou desconhecidos. Multidão aparentemente sem relação, sentido ou ordem de importâncias que ali desfilavam, quase um jogo de cartas marcadas que se revelava no anonimato.

 

Pequenos gestos sustentavam a singularidade de cada um neste caminhar por cima da passarela, o ir e vir de cada atividade humana através de um movimento comum, mas que nunca é o mesmo, percorriam a cena quase sempre no sentido da direita para a esquerda. Estas ações sincronizavam este  gestual com as retiradas das folhas que informavam que figura substituiria e em qual se transformaria logo imediatamente… folhas como cartas, que, fora do baralho, eram jogadas para além do praticável onde as figuras desfilavam.

Nesta contínua mostra de tipos apareciam personagens cotidianas ou extraordinárias como um homem de negócios, o espectador de calça preta e camisa branca social que quer fumar mas joga fora o cigarro, o jovem que pega a caneta e a caderneta para anotar coisas, a moça que pinta a boca e risca seu rosto de batom vermelho, alguém que veste o sobretudo, o cachecol, o vestido elegante, o robe oriental de seda vermelho, o lençol branco que compõe o grego, a estátua em repouso, as mulheres e seus saltos agulhas, os velhos burgueses, o jovem desafiador, a moça bem comportada, a mulher domesticada limpando o chão, a atitude de esperar um trem, o som-ruído que compunha estas paisagens, as pessoas cansadas e que esperam desesperam escorregando pelas paredes, o aprontar-se para um encontro, para sair na rua indo para o trabalho, para ir a uma festa …

 

Fragmentos de histórias, que se abrem e se fecham, ações utilitárias ou não, são reveladas aos poucos, como sentar nos bancos, apoiar nas paredes de forma candente, como um corpo cansado num fim da luta, procurando alívio, se preparando para a competição, guardando objetos ou bebendo água.

 

Todos os movimentos eram gestos ligados e lentos, construindo formas que davam a dramaturgia/ação para o personagem que se construía como um esboço de um desenho. Não se falava, só um leve som de cidade, ao redor o urbano emoldurando aquele constante vestir-se e desvestir-se de personagens em ação.

 

A plateia na expectativa, silenciosa, como se o atraso de uma hora para iniciar o espetáculo (sob a alegação de falta d’água no Teatro Carlos Gomes) de alguma maneira deixasse todos recolhidos, talvez também necessitando pensar o cotidiano de desafios diários do Rio de Janeiro.

Enquanto isto, o performer David Mambouch, bebendo água, enquanto trocava a máscara-cartela que tinha uma proeminência que ele possivelmente segurava com a boca, de cueca branca, com uma touca que prendia seus cabelos, pausava algumas vezes este jogo de cartas embaralhadas. E voltava reanimando-se em cada figura nova que construía em cena, dando-se lentamente no mesmo ritmo encadeado, do fazer e desfazer.

 

A litania do cotidiano, um despertar e dormir, um nascer e morrer, uma humanidade que desfilava seus aparatos e silêncios cotidianos numa pulsação constante. Murmurejos, eco de algo impenetrável misteriosamente dado tal qual um viver incessante, uma repetição aparentemente sem sentido que nos aprisiona até o último suspiro, grito.

 

Uma única vez, ouvimos uma música tipo “americana” anos 50, em sincronia com a figura de uma jovem moça, então surgem mais roupas coloridas… depois um terninho vermelho vestido por uma mulher, que logo se transforma em homem e logo num final abrupto, um rosto, com a boca escancarada como um grito mudo… corte da luz .

 

Pausa final. No ponto central da passarela dos retratos dos indivíduos elementos-chave para percebermos o constante murmurejar da fraternidade que nos incita além da história pessoal e dos interesses deste mundo…

 

Para pensarmos de acordo com Maguy Marin em entrevista para Stéphane Bouquet, na Paris Art, de 15/4/14:

“sim… há o desejo de afirmar que estes rostos conhecidos e desconhecidos têm um denominador comum que é o de pertencer à mesma espécie. A espécie humana”.

 

por Ausonia Bernardes Monteiro

Identidade. O que significa ter uma identidade? Será que temos apenas uma identidade? Como somos reconhecidos pelos nossos pares e pelo mundo externo? O que significa ser reconhecido?

 

O espetáculo Singspiele tem como sua linha narrativa a identidade. Encontramos no placo um performer que se transforma em diferentes pessoas através de máscaras e mudanças de figurino que acontecem quase que ininterruptamente durante todo o percurso do espetáculo.

 

O que nos é apresentado é uma nova forma de questionar a identidade. Um dos grandes assuntos relevantes na pós-modernidade é exatamente o estudo da identidade. Durante a época Feudal e até a Revolução Industrial, o homem nascia com uma identidade e a ela estava ligado até a sua morte. Nessa época a identidade estava muito ligada à posição social ocupada pelo indivíduo.  Quem nascia nobre morreria nobre, quem nascia escravo, morria escravo.

 

Todavia com a Revolução Industrial e as mudanças em nossa sociedade, os lugares sociais foram se tornando cada vez mais maleáveis. Dentro de nossa realidade atual casos de pessoas que nascem em total pobreza e conseguem superar as adversidades e se tornarem ricas são muito falados. A possibilidade de mudança de posição social é uma realidade nos dias de hoje. Mas essa não é a única “identidade” a qual estamos atrelados e que podemos transformar. Devido a estudos e a maior possibilidade de liberdade de expressão nos dias de hoje, podemos questionar nossas diferentes identidades e assumi-las mais fortemente dependendo da situação social na qual nos encontramos. Muitas vezes em certa situação nossa identidade sexual se torna mais relevante que nossa identidade racial. Ou a sua identificação com um estilo de vida define mais sobre você em um determinado grupo de pessoas do que sua posição social.

 

Enfim, a nossa identidade é múltipla e fluida. Na atualidade podemos assumir diferentes identidades e isso não nos torna pessoas desconexas.

 

Singspiele, para mim, é uma leitura dessa teoria pós-moderna. Podemos pensar que o corpo do bailarino, nesse caso, possui uma identidade, percebemos que seu corpo é masculino, caucasiano. Porém a cada mudança de “máscara”, a cada roupa trocada, ele consegue assumir uma identidade diferente, muitas vezes o que podemos pensar ser o completo oposto daquele primeiro corpo que vimos. A cada troca de identidade nos surpreendemos como o que vemos, algumas vezes figuras conhecidas muitas outras, indivíduos que nos parecem completamente anônimos. Porém, conhecendo ou não aqueles indivíduos, agregamos a eles algum sentido, algum significado, uma identidade que imaginamos.

 

O espetáculo nos ajuda a questionar a identidade que vestimos diariamente, ele nos leva a pensar no papel que assumimos ou queremos assumir perante os outros. Afinal a construção das nossas identidades também se dá por máscaras que criamos diariamente diante dos outros indivíduos.

 

por Julia Baker

Foto: © CLAP