QUEM ANDA NO CHÃO, QUEM ANDA NAS ÁRVORES, QUEM TEM ASAS, de GUSTAVO CIRÍACO
Magia Compartilhada
Quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tem asas, quem mora na água, assim os povos amazônicos descrevem os seres da floresta, nos informa o texto de apresentação do novo espetáculo de Gustavo Ciríaco, que estreou dentro da programação do Festival Panorama 2014. A definição dos seres através de sua ação e lugar atiçou meu olhar para a experiência de presença que a obra de Gustavo propõe.
Há algum tempo, o coreógrafo investiga a construção de um presente compartilhado, seja dentro do teatro seja no espaço urbano. Trabalhos como Still – sob o estado das coisas (2007) e Nada. Vamos ver (2009) já revolviam questões sobre o formato do espetáculo e a poética da relação entre performers e espectadores. Para tal, Gustavo deixa visíveis camadas de construção da cena, revelando o jogo que está em ação no tempo e no espaço em que ela ocorre.
Ao forjar de maneira lúdica uma tensão entre realidade e ficção, sua obra nos remete “àquelas brincadeiras de criança onde cumplicidade e confiança no código estabelecido para o jogo têm mais valor do que qualquer pretensão de verossimilhança”, como bem observou Lucía Yáñez, em texto sobre o Nada. Vamos ver, publicada no site idança.net.
O espetáculo atual de Gustavo, Quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tem asas, que após o festival segue até 7 de dezembro no Galpão das Artes do Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, traz esse frescor quase infantil de criar e experienciar o momento presente. Entramos no jogo poético.
É interessante traçar algumas linhas que unem este ao seu trabalho anterior. Onde o horizonte se move, de 2013, é um projeto de site-specific, cuja narrativa é construída de acordo com o lugar onde a obra é realizada e as suas histórias. A cidade, a arquitetura, a paisagem se oferecem como campo real a ser ficcionado, e friccionado, por performers e espectadores. “Um horizonte de cruzamentos entre o que vemos e o que imaginamos”, como diz Gustavo na apresentação do trabalho. A obra engendra percepções, memórias e imagens que vão se reconfigurando à medida que andamos, o tempo passa e novos estímulos surgem. É um estar contínuo, um eterno devir.
Em Quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tem asas voltamos ao teatro – desde a Grécia antiga, o lugar privilegiado para pensar o homem como parte de uma história comum. Desta vez não avançamos por entre a paisagem, é ela que nos invade.
Temos um palco; dentro do palco uma vitrine; dentro da vitrine uma cena congelada com plantas, galhos, objetos, animais e pessoas. Passo a passo, tudo se anima. Em cima da escada, uma menina cantarola sobre a roda da fortuna e o destino. Painéis se deslocam de um lado a outro, sugerindo focos de atenção para ações que se espalham em ritmo vibrante. A cena ganha vida, expande e contrai. Corpos, pedaços de corpos, coisas, bichos, folhas, galhos são parte da engrenagem que se desenrola à nossa frente – a máquina coreográfica.
Gustavo usa o diorama* como dispositivo para explodir o espaço cênico, colocando em discussão a produção de ficção e de percepção, propiciando desdobramentos. Usa o teatro para dialogar com as tragédias do nosso tempo, onde as imagens e o nosso olhar sobre elas são continuamente, e mutuamente, criados, comentados e redefinidos. Mais do que nunca, talvez, precisemos deste estado de presença compartilhada que o teatro pode promover.
Para alcançar essa potência, o cuidado é primoroso. Das cores das roupas e objetos às marcações em perspectiva, que respeitam uma característica fundamental do diorama, tudo é minuciosamente escolhido e executado. Sempre deixando à mostra os ingredientes do bolo, deliciosamente atual. Dedinhos que seguram o céu, exercícios cênicos, mimeses, plantas que discutem o que é tragédia, muito humor. Em dado momento nos transmutamos em plateia de um show de adivinhação; como previsões de um oráculo, escutamos o que está por vir.
No ponto alto da experiência, estamos em uma praia. Algumas pessoas deitadas na areia olham o mar. De repente uma onda se agiganta, lentamente engole tudo o que há em cena e segue em direção à plateia engolindo todos os espectadores, um tsunami, uma mágica compartilhada.
Quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tem asas parte da tragédia grega e do diorama para pensar/dançar/cantar a vida contemporânea – embarcamos nessa viagem junto com Gustavo Ciríaco, Antônio Pedro Lopes, Fred Araújo, Isabel Martins, Leo Nabuco, Luciana Froes, Priscila Maia e Tiago Cadete.
*Muito populares no início do século XX, e encontrados ainda hoje em museus de história natural, os dioramas são cenários que retratam habitats de maneira realista, utilizando elementos pictóricos, naturais e artificiais.
por Silvia Chalub
Foto: © CLAP