Olhares sobre Tempo e Espaço: os solos da Marrabenta
Dally Velloso Schwarz entrevista Bruno, Erika, Marcos e Mariana
Durante a elaboração da escrita de … Eu quero ver quando Zumbi chegar… Eu quero ver o que vai acontecer… sobre Tempo e Espaço: os solos da Marrabenta de Panaibra Gabriel Canda, me deparei com essa relação entre coletivização/ individualidade e fiquei interessada em produzir um texto que apresentasse visões para além de minha percepção. Propor uma fragmentação da visão para a produção de perspectivas atravessadas com possibilidades de uma escrita que traz desenhos diferentes, dissensos e formações de imagens menos nítidas, tensionadas pelas diferenças dos olhos que veem. Por conta disso entrei em contato com algumas pessoas que estavam assistindo o espetáculo no mesmo dia que eu. Todas são pessoas que trabalham com cultura contemporânea. Segue, abaixo, entrevistas para uma imagem caleidoscópica de Tempo e Espaço: os solos da Marrabenta.
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Ele é Bruno F. Duarte é formado em comunicação social, com habilitação em cinema, pela PUC-Rio, coordenou a comunicação do curta-metragem KBELA, é colaborador da plataforma AFROFLIX e assistente de comunicação da Anistia Internacional Brasil, se interessa por trabalhos de arte que articulem relações raciais, gênero, sexualidade e narrativas pós-coloniais. O Bruno atravessou as escadas da entrada do teatro em linha reta com passos rápidos. Estava vestindo uma camisa de botões e nem tivemos tempo de cumprimento. Sei que ele ficou sentado bem na minha frente, acho que umas duas fileiras. Nos conhecemos em um pré-vestibular comunitário no Morro da Providência, quando dividimos, com duas outras amigas, Glaucia e Juliana, aulas de redação. Desde então, acompanho Bruno em seus trabalhos que envolvem arte, direitos humanos e questões raciais. As pessoas devem se lembrar dele, pois seu rosto circulou por aí em uma campanha por jovens negros vivos. Mas outras pessoas também irão se lembrar dele vestido de noiva em performances pela Lapa e Cruz Vermelha.
Dally| O que você achou do espetáculo?
Bruno| Surpreendente. Me chamou a atenção como o bailarino traduziu os marcos históricos e políticos de Moçambique no seu corpo, mesmo processo que faz no embate com a marrabenta. Estou fazendo um curso sobre intelectuais africanos e afro-americanos do século XX e muito do que os estudos pós-coloniais discutem está ali, mas em movimento. Esperei para cumprimentar o Panaibra Gabriel Canda ao final, parabenizar e agradecer pelo espetáculo.
Dally| Como você percebe o debate sobre descolonização do corpo negro/negra no trabalho?
Bruno| Panaibra Gabriel Canda chega num ponto que é crucial nesse debate: como viver hoje sendo negro (africano ou diaspórico) e, principalmente, como retomar a possibilidade de invenção da ideia de um corpo negro, sem o sonho impossível de se apagar a violenta experiência colonial e sem cair nas armadilhas de narrativas de controle desse corpo. Eu acho que esse é o desafio colocado no espetáculo e brilhantemente respondido ao final com a contagem de datas e membros do corpo, localizando a experiência do bailarino no espaço e no tempo do momento da apresentação – deitado no chão, com um microfone e um foco de luz sobre ele. Um corpo vivo. Repleto de marcas, mas que segue se rebelando em batalhas únicas.
Dally| O que te chama muita atenção no trabalho enquanto assunto de performance na contemporaneidade?
Bruno| Descolonização do corpo negro e trabalhos que explorem questões de gênero ou hierarquias e autoridade no processo de criação/ apresentação artística.
Dally| O que você poderia falar sobre as linguagens artísticas para promover debates políticos, éticos e sociais?
Bruno| Eu acho que as questões levantadas por Edward Said em Cultura e Imperialismo deveriam ser mais debatidas nas escolas de arte.
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Ela é Erika Villeroy, bailarina e pesquisadora, licenciada em dança contemporânea pela Faculdade Angel Vianna e formada em dança afro-brasileira pela mestra Valéria Monã. Ela estava sentada nas escadas do teatro esperando uma amiga. A gente se conhece não sei bem de onde, mas fazemos aulas de dança juntas. Eu me aproximei dela, e começamos a conversar sobre outro espetáculo que aconteceu em um dia de domingo. Com os cabelos trançados e presos somente por uma parte, vestia uma camisa branca e uma calça preta um pouco solta. No seu nariz, um piercing no septo que só dava para ver a metade. Me lembro que ela me disse que não sabia muito bem sobre a marrabenta. Conversávamos sobre a relação da língua e da cultura portuguesa e Erika me contava de um trabalho que ela tinha visto no MAM, há um tempo, de duas artistas que ironizavam a história de colonização de Portugal.
Dally| O que você achou do espetáculo ?
Erika| Achei muito bom. A pesquisa de movimento do Panaibra Gabriel Canda me interessa demais e o trabalho tem uma carga política consistente e eficaz naquilo que se propõe.
Dally| Como você percebe o debate sobre descolonização do corpo negro/negra no trabalho?
Erika| O trabalho é o debate, não é? Não tem nada ali que não passe por isso. O Panorama é um festival de dança contemporânea e os trabalhos que estão na programação têm um determinado perfil – que vem se atualizando do ano passado pra cá. Quando eu vejo o trabalho do Canda, é como se ele tivesse hackeado/ráqueado uma rede que aqui no Brasil ainda é bastante fechada sobre si mesma que é a da dança contemporânea. Isto é, só o fato dele estar lá já levanta algumas questões e expõe a existência de alguns territórios que para quem está do outro lado, para quem já nasceu contemporâneo, podem passar desapercebidos.
Então ele começa falando de identidade e de fragmentação. E tem sempre que começar de novo, e se repetir, porque a colonização envolve um processo de desarticular, sobrepor, apagar e inventar os nomes que nos definem, que definem os nossos corpos. Do mesmo modo, a possibilidade de descolonização me parece depender da medida de autonomia que a gente consegue construir sobre esse mesmo processo. E o que o Canda faz é alguma coisa nesse sentido. Não acho que ele esteja resolvendo nada ali – aliás, tem muito de frustração no trabalho. Mas é como se ele, dançando, jogasse uma luz sobre algumas forças que cortam/delimitam/constroem não só o corpo dele, mas um corpo coletivo também. E isso tem muita força.
Dally| O que te chama muita atenção no trabalho enquanto assunto da dança na contemporaneidade?
Erika| Me chama atenção quando ele fala “é preciso acabar com o corpo tribal”, “com o corpo ritual”, “com o corpo negro”, e (alguma coisa assim) “é preciso criar um corpo assimilado”. Isso é sobre a colonização de Moçambique ou sobre dança contemporânea? O que esses dois assuntos têm a ver um com o outro? Quero dizer – mais uma vez, a gente tem dois lados da história. Tem os grandes artistas que resolveram se debruçar (que é uma expressão que significa muita coisa) sobre algumas dessas questões, que são aplaudidos e legitimados pelo público, pelos festivais e pela crítica como uma vanguarda. Isso nem é de hoje, já vem lá da dança moderna. E tem também aqueles que são de fato marcados por elas – isto é, os artistas negros que tiveram parte da sua formação em danças que não são consideradas contemporâneas. Aí eu percebo tanto um campo bastante fértil pra articulação de linguagens outras, quanto as dificuldades que estão implicadas nessa mesma articulação, porque não estamos falando de elementos homogêneos e harmônicos que se misturam. É uma relação de forças desiguais, são desequilíbrios que acontecem o tempo todo e que a gente precisa agenciar de alguma forma – e acho que o Solos da Marrabenta passa por aí.
Dally| Você, como uma dançarina e pesquisadora também de danças afro-brasileiras, percebe de alguma forma presença, semelhanças ou parentesco nos movimentos?
Erika| Percebo. Bom, tem alguns pontos que são mais palpáveis – a flexão dos joelhos e um certo modo de bater os pés no chão, a articulação das escápulas/ombros e a ondulação da coluna. Isso a gente reconhece na hora. Tem também a questão da polirritmia (os membros inferiores estão em um tempo e os superiores em outro) e da relação com o chão. Para além disso, eu vi ali essa qualidade de presença que é muito familiar, que é como se tivesse um desprendimento, uma despreocupação aparente para fazer – com precisão – movimentos que são na verdade bastante vigorosos e exigentes com o corpo. Acho que esses elementos falam de uma corporeidade negra que a gente vê tanto na diáspora quanto em tantas outras partes do continente africano.
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Ele se chama Marcos Aganju músico e educador com formação pela UERJ/FEBF e recentemente participou de uma imersão em processos criativos com foco na cultura afro-brasileira contemporânea pelo Afrotranscendence no Red Bull Station (SP). Marcamos de nos encontrar na frente do teatro. Estávamos falando sobre seu trabalho recente com um duo de música chamado Amalá, junto ao músico Emerson Costa. Usando óculos e calça xadrez, os cabelos soltos e com uma parte amarradas pelos próprios fios. Ele me contava sobre o ensaio e chamava atenção para as músicas que o duo iria tocar num evento que aconteceria em uma favela carioca na virada do dia 19 para o 20 de novembro. Ele estava curioso com o trabalho, e ficou até surpreso por saber em cima da hora que no palco teria um guitarrista além do dançarino.
Aganju| Achei bom e potente em vários sentidos, sobretudo a ideia de dialogar as questões políticas de Moçambique, que aqui no Brasil não é muito falado. Percebi que Panaibra é um artista interessante para além da dança, às vezes um espetáculo de dança é só um espetáculo de dança e não tenho nada contra, as vezes acho até melhor que assim seja do que pretender um algo e não se alcançar, mas quando o artista mostra mais e gera mais diálogos possíveis para além do quintal da arte acho que se torna mais relevante. Isso se reflete em como ele conduz o espetáculo, lidando com assuntos tão pertinentes ao agora. Não é sobre arte engajada, é sobre vida não separada do que se faz enquanto gente. Artista além da ladainha teórica acadêmica maniqueísta que atualmente vivemos.
Dally| Como você percebe o debate sobre descolonização do corpo negro/negra no trabalho?
Aganju| Difícil isso. Sobre qual negro falamos? Negro de Moçambique? Negro Brasileiro? Negro mestiço? Negro homem? Mulher? Isso tudo é muito assunto, porque não há unidade quando se fala em Negro. Descolonização no Brasil é um papo diferente da descolonização moçambicana… Muita coisa. Acho que o Panaibra dá um panorama geral do negro moçambicano, e faz bem o que ele se propõe, mas dá pra perceber que é só um pedaço da conversa. No sentido que ele expõe, vejo uma similaridade de discurso de vários pensadores e artistas negros. Temos que lidar o tempo todo com a dualidade de sermos quem somos e o que a sociedade ocidental branca espera que sejamos. Isso gera muita aflição porque para além da pós-modernidade que isso suscita, estamos lidando com aflições geradas pelo racismo que está num âmbito estrutural maior e mais complexo. Lidar com essa descolonização do corpo é um trabalho árduo para todos, sejam os negros ou não negros brasileiros, moçambicanos, angolanos, etc.
Espetáculo relevante, sobretudo para quem pensa sobre questões referentes à história dessas colonizações confusas e seus desdobramentos em países latinos e africanos. Pensando especificamente nos países da África, isso se dá de uma forma muito difícil de entender pra quem não vive certas realidades como Moçambique e Angola onde a independência se deu bem mais tarde do que no Brasil. No Brasil a esquerda tem um viés estritamente Marxista, sem pensar que, às vezes, certas concepções políticas, por mais interessantes que possam ser para pessoas de classe média branca, podem ser completamente diferentes se aplicadas em países africanos. Isso o Panaibra mostra bem no espetáculo, essa confusão da pessoa que ao mesmo tempo é parte da sua comunidade e parte de um mundo que impõe certos costumes e vivências que entram em conflito com a existência das pessoas que não estão de acordo com o projeto global ocidental imposto.
Dally| O que te chama muita atenção no trabalho enquanto assunto de música na contemporaneidade?
Aganju| Como músico não acho muito contemporâneo o que se apresenta no espetáculo, no entanto há uma tradição de guitarristas africanos que aqui nem chegamos a ter muito contato que para os ouvidos menos atentos pode parecer novidade, mas não é. De qualquer forma acho o trabalho do músico em cena muito bom, bem como a sintonia dos dois durante o espetáculo. Aliás aqui, se pegarmos ritmos como guitarrada, dá pra perceber as similaridades musicais inclusive. O lance é que aqui a música africana que chegou mais forte é a música com instrumento de percussão. Parece que entendemos melhor de música africana com tambor do que de música africana com instrumentos de corda (exceto berimbau), por aqui pouco se conhece da longa tradição dos instrumentos de corda que há em vários países da África que não vou ousar citar porque nem tenho conhecimento pra cair nisso.
Dally| Você como um músico pesquisador também de ritmos negros, percebe de alguma forma presença, semelhanças ou parentesco na sonoridade marrabenta?
Aganju| Totalmente. Arrisco dizer inclusive que qualquer músico brasileiro assimilaria esses ritmos porque são nossos também, dado nossa proximidade com os ritmos africanos (que aqui chamamos de ritmos brasileiros). Diria que esses saberes musicais estão irmanados. Somos parentes mesmo, somos descendentes desses mesmos Negros do outro lado do Oceano. Obviamente com o tempo certas coisas se distanciam, mas a base é a mesma, trazemos em nosso DNA ou numa terminologia mais adequada em nosso Orí. Se pegarmos alguns ritmos Afro-caribenhos e Afro-cubanos conseguimos juntar facilmente e entender as levadas. Tá tudo lá, é só sentir.
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Ela é Mariana Pimentel, artista da dança e gestora cultural. Atua em projetos independentes e integra o grupo de pesquisa Corposições. – Profanações entre Afeto, Performatividade e Território. Eu a vi depois que a performance terminou, quando todos de pé aplaudiram, e muito, o trabalho. Ela estava nas terceira ou segunda fileira. De costas, me lembrei de sua imagem em seu trabalho solo We don´t have money, but we are funny que assisti há uns dois anos no Cacilda Becker, deitada em cima de muita farofa usando roupas íntimas. Nós não tínhamos conversado sobre esse trabalho, mas sei que Mariana vem fazendo interlocuções com questões de identidade e descolonização do corpo em dança, assim como aproximações políticas. Acho que a escutei rindo quando Panaibra gritou “Olé!”
Mariana| O espetáculo é muito potente, tratando com ironia e humor das marcas profundas deixadas no corpo do artista pelos processos políticos pelos quais o seu país – Moçambique – tem passado, os quais concretizam uma crise de identidades. Possui como estruturação uma articulação constante entre os discursos criados pela palavra e pelo movimento; e a música tocada ao vivo pelo artista Jorge Domingos. A coreografia remixa de forma interessante diferentes estilos e gêneros do campo da dança, nos fazendo duvidar e desapegar da ideia do que é originário, coletivizando de forma inteligente um discurso individual.
Dally| Como você percebe o debate sobre descolonização do corpo negro/negra no trabalho?
Mariana| O artista situa este debate a partir do manuseio sensível do texto e sua relação com o movimento, dando relevo de forma contínua à marrabenta mesmo quando posta em relação a outros tipos de dança. O posicionamento crítico diante dos diferentes períodos políticos vivenciados pelo país (colonização, ditadura e democracia) e a problematização da necessidade de construção de um “corpo assimilado” ou de um “corpo do homem novo”, que são impostas por situações de opressão, constroem uma posição de empoderamento do corpo negro que reafirma um ponto de virada nas relações entre “colonizador e colonizado”, vivido com cada vez mais força na contemporaneidade. A cultura do “colonizado” acaba por se sobrepor à cultura do “colonizador”, destacando-se com mais intensidade e força no imaginário coletivo? Creio que esta é uma importante discussão que o espetáculo coloca que ainda tem muito por desenvolver.
Dally| O que te chama muita atenção no trabalho enquanto assunto de presença na contemporaneidade?
Mariana| A presença é um conceito difuso e complexo, sendo ativada neste espetáculo por uma relação entre corpo, política e memória. Relacionar como o corpo pode lidar com o que se perde da memória quando alvo de opressões; com a escolha do que lhe interessa guardar das influências que, ao mesmo tempo, também são frutos desta situação conferem uma presença subversivamente leve e intensa ao artista. Seu corpo vive a experiência do presente, se contamina e se deixa levar. Por si mesmo e suas próprias construções, pela música e pelo quê de deslocamento que ela pode acrescentar, como quando dança ao som de Amália Rodrigues pronunciando um alto “Olé!” ao final da música. Porque o “corpo forte para vencer a guerra” é o corpo da dança.
Dally| O que você poderia falar sobre produções em danças e suas relações com debates críticos sobre corpos, formatos e identidades?
Mariana| Percebo que existem cada vez mais produções que problematizam e discutem o corpo da dança contemporânea em relação à constituição e afirmação de identidades, sobretudo em países que passaram por processos de colonização. Isto é um indício importante de desmistificação deste processo, na maioria das vezes abordado de forma polarizada: o colonizador como o único forte, o colonizado como o único massacrado. A resistência – de quem foi e é invadido – é muito potente. A passividade e falta de poder de enfrentamento nem sempre é uma realidade. Outra discussão delicada que merece mais destaque nesta reflexão!
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* Dally Velloso Schwarz é pesquisadora, educadora e artista. Atua como professora substituta na área de cultura, dança e pedagogia no Departamento de Artes Corporais na UFRJ. Mestre em Artes Visuais pelo PPGAV/UFRJ.Graduada em Estudos de Mídia pela UFF. Estudou na EAV/Parque Lage e Escola Angel Vianna. Colabora com Ctrl Alt Dança, Projeto 7X7, Idanca, Temas de Dança, Atelier de Performance-UERJ, Coletivo Instantaneo. Atualmente procura formas criativas e coletivas de criações nos encontros entre artes visuais, dança e comunicação. Trabalha em parceria com artistas na cidade do Rio de Janeiro.
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Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2016.
Foto1: © David Andrako
Foto2: © Júnior Aragão/Cena 2013[/unordered_list]