O movimento e a catarse: a interpretação da tradição árabe por Bouchra Ouizguen*
Julia Baker
Um espetáculo que começa no escuro, onde o nada que vemos se transforma em tudo que podemos perceber. Ha! Tem uma potencialidade que transborda continuamente pelo apresentação. Da penumbra surgem movimentos catárticos, estamos aparentemente diante de um culto, um transe que leva os performers presentes naquele palco escuro a repetir uma entonação e um movimento sem fim.
É quase uma agressão para a plateia. Ficamos imaginando: será que eles estão sofrendo? Se machucando? Não temos certeza de nada, a curiosidade de compreender aquela cena, o que está sendo entoado cresce a cada momento. Entender aquela ausência, o que se esconde por trás do breu parece ser a principal missão do público. Quem está no palco? Estamos diante de quantas pessoas, quantos corpos se fazem presentes? Essas questões vão se diluindo à medida que a luz começa a entrar no espaço cênico e percebemos que os performers são apenas mulheres, mulheres de diferentes formatos, com diferentes vozes e capacidade de movimentação em cena.
Dentre as mulheres que ocupam o espaço da cena se encontra a própria coreógrafa, Bouchra Ouizguen. Em entrevista feita para o Festival, a mesma revela que o espetáculo se insere em sua pesquisa sobre as tradições populares marroquinas, um tema abordado em seus outros trabalhos coreográficos, como a própria comenta.
Interessante notar que Ouizguen nomeia as tradições cantadas e a tradição oral como principais fontes de pesquisa, tradições ligadas a verbalidade, a palavra que passa de geração em geração. O recorte curatorial do Festival se traduz no espetáculo: vemos a relação entre movimento, palavra e discurso aflorar, pois, é a partir do último, das ideias que inventam as tradições daquela cultura, que o movimento é criado e o que nos é apresentada uma fala dançante das tradições revisadas por Ouizguen.
A tradição explorada no espetáculo é a forma como a loucura é tratada nos países árabes. Nessa parte do mundo, as palavras que categorizam os tipos ditos como loucos são tantas quanto os tipos de cura para esse “mal” – canto, dança trance, rituais místicos entre outras maneiras de tratar a loucura. Diferente de nós, ocidentais, nesta cultura o louco é um agente com voz, não é excluído e marginalizado. O escapar a norma tem uma importância e espaço na sociedade árabe. E, afinal, o que é a norma? O que é a norma em uma sociedade ou o que é a norma no palco? Não existe, são espaços em que a margem é sempre colocada a nossa frente, tensionando o que acreditamos ser o padrão.
Um palco escuro estressa a norma, a ideia que a dança trás consigo a obrigatoriedade do olhar. Mesmo quando a penumbra se instala no palco e começamos a perceber os movimentos, não existe norma ou padrão. São movimentos que conseguimos reconhecer, cabeças que se sacodem para frente e para trás, mas que não nos remetem necessariamente para o que imaginávamos plausível surgir quando a visão se tornasse possível.
E esse movimento nos leva para que caminhos? Podemos ncontra-lo em espaços religiosos em que fiéis realizam suas preces? Ou sendo realizado por mães que lamentam a morte de seus filhos? Ou, até mesmo, em um show de música onde todos balançam seus cabelos em conjunto? O movimento que vemos no palco nos leva para diferentes cenários, ora de liberdade ora de sofrimento, tortura. O movimento não pode cessar, não há espaço para cansaço ou desejo individual, ele segue em conjunto, é parte de um todo, compondo sentimentos de liberdade/tortura que presenciamos no palco a todo o momento.
Na cena estamos diante de corpos com formatos, idades e potencias diferentes. Quando eles se revelam, um estranhamento acontece. Não são os clássicos corpos que nos vem a mente quando pensamos em dança, mas, por fugirem a norma, quebrarem com o esperado, realizam movimentos que nos surpreendem, corpos marginalizados mas repletos de dança e expressão. Eles ocupam o espaço, libertam se de ideias pré-concebidas e transitam livremente. Um corpo transbordando discurso, impregnado pelas vivências da cultura a qual ele está inserido.
Como citado anteriormente, o movimento do corpo nunca cessa assim como as palavras entoadas ao longo do espetáculo. Mesmo com a ausência de luz impedindo o uso pleno de nossa visão, – no começo do espetáculo tínhamos que nos apoiar em outros sentidos já que a escuridão impedia o encontro de nosso olhar com o que estava acontecendo no palco – a emoção passada pela entonação daquelas palavras se mantém, não é necessário o entendimento das palavras. Estamos todos unidos, nos tornamos um único corpo, um corpo que se espalha pelo mundo e mostra que a norma não deve ser a regra.
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Julia Baker é produtora e curadora. Tem interesse nas artes do corpo em geral. Atualmente trabalha na gerência de conteúdo do Museu de Arte do Rio (mar) e estuda o mercado da arte em seu mestrado.
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Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2015.
Foto: HA!, de Bouchra Ouizguen | Cie O (C) CLAP[/unordered_list]