A Marrabenta passeia por aí

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Fabrício Persa*

 

 

Por mais singular que seja a linguagem de um corpo em movimento, uma dança de Moçambique pode ser quase íntima para os brasileiros: a Marrabenta. Uma entre tantas outras danças africanas, foi, porém, a que Panaibra Gabriel Canda, bailarino de Maputo, escolheu, por ser bastante familiar ao seu povo, à sua cultura, sua cidade. A performance faz acontecer um diálogo entre questões sociais, urbanas e raciais com uma típica cultura preta.

 

No espetáculo Tempo e Espaço: Os solos da Marrabenta, a dança de Canda é acompanhada pelo guitarrista Jorge Domingos, que não fica ao canto do palco como comumente acontece com instrumentistas que tocam em espetáculos de dança com música ao vivo. O músico participa do jogo cênico tocando sua guitarra marrabenta ora sentado, ora em pé nas laterais, ora preenchendo o palco com passos que faz em paralelo com o outro corpo que dança. Na performance de Canda e Domingos vemos o encontro da música com o corpo, quando batem de frente, dos lados, sem tocar a pele, somente os sentidos, pois ela é intangível, intocável, invisível.

 

A interação entre ambos é de respeito, onde um corpo concede lugar para que o outro se mexa junto e brinque com o movimento e o espaço. A música também vem dos pés de Canda. Ao bater melodicamente no solo de madeira do palco, cria-se uma percussão. Quando ele amarra nas pernas um instrumento de chocalhos rítmicos pulsando com o corpo, amplia-se o som e o sentido do visto.

 

Quando digo que a marrabenta é quase íntima do Brasil, não relaciono somente a dança e sua música ao nosso país. Na verdade, a marrabenta, ao meu ouvir, nem tem muita semelhança com os tambores ecoados pelos negros na América, porém, refiro-me ao contexto que envolve estas duas artes em ambos os países falantes da mesma língua. Mudam-se os indivíduos, permanecem os cenários e os conflitos. A pátria parece ser a mesma nos dois casos. O sentimento de pertencimento ao assistir e ouvir e ver o espetáculo brota instantaneamente para um brasileiro.

 

Canda parte das reflexões sobre sua identidade e seus elementos encadeadores. Comunismo. República Democrática. Colonização. Domínio verbal. Língua portuguesa. Nove irmãos. Querem acabar com o corpo tribal. São abordados os dramas do corpo negro, que pode ser somente o africano, mas que tendem a ser os mesmos em qualquer lugar para um negro. Querem o fim do corpo negro.

 

Os discursos verbais, corporais de Canda e o ritmo da Marrabenta são narrativas contraditórias. Como um país marcado por guerras pode ter uma dança tão alegre e expressiva? Apesar do estigma, do preconceito, da subjugação da negritude e da guerra moçambicana que acabou há pouco mais de uma década, a marrabenta existe mostrando esta oposição. Os africanos e os brasileiros negros têm disto, essa tal da contradição. Recurso utilizado, parece-me, para se ter qualquer resto de equilíbrio e seguir avante. A pergunta se encaixa para todo o continente africano com rico volume de danças percussivas que exaltam a festa, a coletividade e a comunicação até com os mortos. A negritude brasileira se inclui nesta mesma indagação enigmática. A força da contradição é o fundamento.

 

Esta corda bamba da sustentação do corpo negro figura ser permeada por ritmo e resistência. A resistência aqui tem sentido ambíguo. A resistência de fora e a de dentro. Ou seja, a resistência dos não-pretos frente às culturas e traços físicos dos pretos. E a resistência dos próprios pretos apesar da loucura do racismo, mantenedores de suas culturas fortes e únicas, resilientes. Tempo e Espaço: Os solos da Marrabenta evidencia esta cultura latente e as dificuldades por assim ser, através dos tempos, independente dos espaços onde este corpo negro se encontre, apesar das diferenças, seja em Moçambique ou no Brasil, na Europa ou na Ásia.

 

Eu adoraria não ter que citar os problemas da negritude ainda nos dias que correm, melhor, tenho certeza que Panaibra Canda também gostaria de apresentar a marrabenta como somente mais uma forma de se dançar e musicar  o corpo, trazendo só a simbologia da sua cultura. Mas ainda é impossível dissociar os conflitos sociais endereçados à cultura negra especificamente. Há de se valer da criatividade para espalhar a reflexão por onde a marrabenta passar. Preciso se torna falar dos dramas da negritude, necessário se faz refletir sobre tais questões, a urgência do respeito e da aceitação opera como máquina e combustível.

 

 

* Fabrício Persa é formado em Jornalismo pela Universidade Estadual da Bahia e hoje atua com produção cultural nas áreas de cinema e música, residindo na cidade do Rio de Janeiro.

 

Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2016.

 

Foto: © Júnior Aragão Vale[/unordered_list]