Experimentos em textos críticos, em textos que se movem – Laboratório de Crítica no Festival Panorama 2015
Em 2015, cerca de um mês antes do início da programação no Festival, lançamos uma convocatória aberta a interessados e, alguns dias depois, iniciamos o minicurso Escritas da Crítica nas Artes do Corpo, na Biblioteca Parque Estadual (BPE), na Av. Presidente Vargas, na cidade do Rio de Janeiro – primeira atividade do LabCrítica 2015. A BPE, parceira do Festival Panorama 2015, é um super-espaço, público, sempre muito movimentado e de ambiente agradabilíssimo, que nos acolheu por um mês, de 19 de Outubro a 19 de novembro, para as aulas do minicurso e para os encontros posteriores do grupo de trabalho ao longo do festival. Nesse espaço, pensamos e exercitamos, como vetores de tensionamento com a crítica, questões sobre acontecimento, performance, performatividade na escrita, textualidade, curadoria e dramaturgia, acompanhados das contribuições textuais de Jacques Derrida, John Langshaw Austin, Peggy Phelan, André Lepecki, Luiz Camilo Osório e Lígia Tourinho[iii], além de outros textos e referências que foram chegando, alguns deles trazidos pelos participantes do laboratório[iv].
Nessa esteira, é importante destacar a leitura de Razões da Crítica (2005), de Luiz Camilo Osório, que nos ajudou a pensar o momento da crise da crítica como eco da crise política atual. Ambas atividades, crítica e política, estão “voltadas para o debate, para a pluralidade de vozes e o vir a ser indefinido da arte e do mundo, cabendo a nós reinventarmos os seus espaços e formas de atuação”. Com Osório, o pensar a crítica [e, em ressonância, a política] é colocar-se em “exercício comum que põe as obras em questão ao pôr-se a si e ao mundo em questão”; um “exercício do juízo e [uma] liberdade de manifestação e dissenso” (OSÓRIO, 2005, p . 11-12).
Hoje, em 2015, no Brasil, sobretudo, pós-jornada de manifestações de Junho de 2013 (mas não somente aí), podemos dizer que há uma urgência do debate político e sua afecção nos corpos da cidade. Há debates na res publica contemporânea, agora-mesmo, acontecendo, redimensionando, por vezes, o sentido de público… desde ali na outra tela, como também no botequim da esquina, nas ruas, nas salas de aula, na ocupação de todos esses espaços. Há uma multiplicidade deles. E, talvez, o desafio mais premente seja pensar essa multiplicidade criticamente… ou melhor, pensa-la “com mais crítica”, para também pensar aquilo que nos afeta e que pode vir a nos afetar, como uma tomada de nossos corpos.
Assim, ao invés de ingressar numa rota estéril de através da crítica tentar dar sentido às obras que, cada vez mais, na “incerteza ontológica da arte contemporânea”, oscila “entre ser e não-ser arte” (OSORIO, 2015), o LabCrítica 2015 tomou como desafio pensar modos de escrever com as obras e quase-não sobre elas. Ou, melhor, ao invés de abandoná-lo, optamos em redimensionar o sobre: quando escrevemos sobre, pensamos nesse gesto como uma inscrição; como quem escreve sobre uma superfície, onde o escrever já é um estarcom a superfície, alterando-a, imprimindo acidentes sobre ela. Isso significa dizer que, aqui, toda escritura sobre uma obra assume, desde a inscrição, que o que se escreve sobre não restitui a referência, mas sim a desloca. Propomos, então, a escrita da crítica como um experimento em texto “para assumir de modo mais exploratório” o processo aberto de criação de sentido; e, ainda, para tensionar o próprio estatuto da crítica e seu apelo ao comum.
Essas escolhas podem soar como uma proposta arriscada, que quase beira um certo tom histérico da livre multidão de discursos, na qual [por vezes, estrategicamente – portanto não tão livre quanto alguns podem crer] resta pouco espaçotempo para se pensar os limites da hospitalidade/hostilidade desses discursos. A leitura de Jacques Derrida foi essencial para pensarmos na textualização de discursos – que beiram sempre atos de violência – mesmo nas obras mais silenciosas. “Quer dizer, essas obras silenciosas já são de fato faladeiras, cheias de discursos virtuais, e desse ponto de vista, a obra silenciosa torna-se um discurso ainda mais autoritário – ela se torna o lugar mesmo de uma palavra que é tanto mais poderosa porque é silenciosa, e que carrega em si, como um aforismo, uma virtualidade discursiva que é infinitamente autoritária, em certo sentido, teologicamente autoritária”, nos diz Derrida, em As Artes Espaciais (2012, pp. 26-27, grifo meu).
Nem tudo aquilo que diz circular livremente é libertário, tampouco é – de imediato – liberdade. A livre circulação de sentido, de obras, de bens, de signo e de pessoas é sempre acompanhada por forças de lei, acordos, performativos, limites de tradução, fugitividades, desníveis entre as superfícies aonde se movem e tantas outras paragens incondicionais do jogo da alteridade. E, talvez, a crítica [com a desconstrução necessária que coloca os apelos da universalidade também em crise] nos faça pensar nessa incondicional aporia. Inscrevendo nas obras, escrevendo sobre elas.
Nesse laboratório, a crítica e os que fazem seu uso precisam se pôr no exercício de questionamento de si e dos seus limites na engrenagem automovente do infinito discursivo, do “há sempre mais a dizer, e somos nós que o fazemos falar cada vez mais e mais”[v]. Afinal, por que escrevemos/ lemos crítica? Se aceitamos a formulação de Osório, por que disseminar o dissenso? Por que ainda insistir nessa política da crítica?
Eis algumas perguntas que puderam ser testadas nesse laboratório.
*
Os textos aqui disponíveis apresentam alguns traços entre autores que ajudam a acompanhar o processo do trabalho coletivo no LabCrítica 2015. O exercício de escrever com as obras/ sobre elas, aliado às discussões em grupo, levou à escrita de textos que propõe reflexões conjugadas com o mais de um/a [entre obras, textos e referências] tecidos pelo interlocutor. Algumas dessas proposições chegam a tensionar os percursos sugeridos pelo Festival Panorama 2015, como textos críticos que pensam a curadoria desse ano.
Nesse sentido, a colaboração de Nayse López, curadora e diretora geral e artística do Festival Panorama, foi fundamental. Nayse, durante a Aula Magna, abertura do semestre 2015.2 dos cursos de Dança da UFRJ, Curadoria, Festivais e Artes do Corpo[vi], nos apontou vários desafios da programação do Festival que estava a poucos dias da estreia, além de lançar pistas para uma elaboração mais justa do papel de “curador” nas Artes do Corpo. Nayse nos lembrou que a noção de “curador” herda uma tradição das Artes Visuais, e que, no Brasil, ainda, em geral, se confunde muito com as funções de diretor geral e de produção, numa mesma pessoa.
Com uma intensa produção de textos, encerramos o LabCrítica 2015 com um grupo de treze autores/as – Ana Pinto, Ausonia Barbosa Monteiro, Carlos Eduardo Mello (Cadu), Felipe de Paula Lima, Julia Baker, Juliana de Souza, Laura Vainer, Mariana Calazans, Renann Fontoura, Silvia Chalub, Tiago Amate, Vera Terra e Verena Than. O perfil de formação e campos de atuação dos participantes desse ano, além da dança, cruzava outras áreas como Filosofia, Jornalismo, Estudos da Performance, Curadoria, Crítica Literária, Produção Cultural, Música, Teatro, Psicologia e Terapia Corporal. As variadas as experiências de fala engendraram estilos literários e perguntas diferentes para cada autor/a.
Felipe Lima, em seu texto Sobre Corpos, Palavras e Paisagens, faz uma tessitura de vestígios que soam direcionados a um diário de bordo cheio de referências. Estão em jogo os buchichos entre as conversas no LabCrítica e as conversas nas salas dos teatros, com pitadas de uma ou outra citação direta, acompanhadas de comentários sobre as obras assistidas no Panorama 2015, como Untitled_I Will be there when you die, de Alessandro Sciarroni (ITA), as quatro peças de Jonathan Burrows e Matteo Fargion (ING/ITA) – Both Sitting Duet, Body Not Fit For Purpose, Cheap Lecture e The Cow Piece – Risco, de Michel Groisman (BRA), e Forecasting, de Barbara Matijevic e Giuseppe Chico (CRO/ITA). O estilo literário de Felipe tem ainda a “pretensão absoluta, mas jamais descabida”, segundo as palavras do autor, de “emular uma memória mínima que fosse” do movimento new journalism, expresso nos ensaios do escritor americano David Foster Wallace, e dos ecos dos diários da escritora britânica Rae Earl. E se pergunta: “onde mais poderia analisar e testar uma ideia, senão num laboratório?”
Vera Terra, em O que podemos dizer sobre ela?, também forja encontros e perguntas entre as obras de Denise Stutz (BRA), Entre Ver, de Vera Mantero (PT), O Que Podemos Dizer Sobre Pierre?, e de Michel Groisman (BRA), Risco, para pensar as questões de textualidade, partituras e escuta em dança. Numa escrita filosófica, faz referências a John Cage, conectando passagens das danças vistas no festival e lançando perguntas sobre modos de pensar-fazer dança contemporânea.
Já Ana Pinto, em Sob a espuma do discurso, vemos em questão as dobras do discurso falado nas obras de Vera Mantero e Denise Stutz. Mariana Cerino Calazans também faz uma discussão sobre a relação dança e palavra, dialogando com a obra de Stutz, no seu texto, Em “Entre Ver”, tudo que vemos de Denise Stutz é uma aparição, que lança perguntas sobre efemeridade e memória na dança com palavras.
Ainda com Entre Ver, Rennan Fontoura, em Que Dança e Para quem Dança Entre Ver de Denise Stutz?, relata os jogos de substituição entre a sua vida e a vida de Denise contada no palco, daquilo que parece estar lá e não está ao mesmo tempo. O relato despretensioso, as trocas de personagens e temporalidades e o infinito que persegue Fontoura nos ajuda a ver como o jogo de ficcionalidade, perguntado por Calazans em seu texto, opera na experiência do expectador.
Ainda conjugando obras, Cadu Mello, em A corda, o heptágono, o furor, nos apresenta uma discussão sobre fúria e crise nas obras Durational Rope, do Quarto Artist-Duo (SWE), e Monotonia de Aproximação e Fuga para Sete Corpos, do Cena 11 (BRA). Cadu ainda nos brinda com mais dois textos nessa edição: o É Prudente Não Precisarmos Saber se Pierre significa Pedro que, junto à obra de Vera Mantero, pensa a diluição do demasiado cotidiano na paisagem, no quase-ali entre 18h30 e 19h, no Parque Lage; e, o outro, Pé de vento e cabeça no chão, cabeça vento e pé no chão, que tenta pensar como um espetáculo para o público infantil provoca perguntas para um festival de arte contemporânea, com o espetáculo Pé de vento cabeça no chão, da Cia Rec.| Alice Ripoll (BRA).
Laura Vainer faz uma escrita da intimidade. Em Dança Baixa e o tesão da intimidade, a autora desenha espaçamentos e minuciosas descrições sobre o encontrar-se com a obra nua e o estarcom Dança Baixa, da Cia dos Pés (BRA). Numa outra esteira, Ausonia Monteiro também escreve sobre a Dança Baixa, em A Dança Baixa de Alagoas: temporalidades em conexão. Ausonia faz uma leitura contextual-histórica da chegada dessa singular dança de Alagoas e suas referências no Festival Panorama 2015.
Silvia Chalub apresenta dois textos nessa edição. Em A Dramaturgia Fina de Raimund Hoghe, Silvia nos conta com encantamento arrebatador a poderosa escrita cênica de Raimund Hoghe (DEU) em sua obra, An evening with Judy. Já em Disponível para Jogo, a autora escreve sobre a estranha entrega que sentiu ao se relacionar com Ha!, de Bouchra Ouizguen| Cie O. (MAR). Fala das referências das tradições marroquinas, tão longínquas às suas pessoais, o que engaja a autora a um desejo de ir atrás de outros textos, outras referências a partir daí.
Julia Baker, em O Movimento e a Catarse, também escreve sobre os movimentos de tradução entre a tradição árabe e o espetáculo de Ouizguen, desde sua perspectiva, vista de cá, olhando o outro estrangeiro. Já em Duas Vidas Em Uma Noite, Baker nos conta como as trajetórias de R. Hoghe e Judy Garland se encontram na dramaturgia de An Evenning With Judy, nos fazendo pensar como rastros de biografias dos artistas se cruzam entre luzes e flashs, ora aparecendo, ora se escondendo [ou se guardando, numa mala].
Juliana De Souza, por sua vez, em Ha! Cultura Folclórica re-load de Bouchra Ouizguen, destaca as passagens cênicas que dão ritmo a obra, apontando a questão de gênero que grita em Ha!. Escreve também Humor Britânico, dois homens sentados e acidez sutil, sobre duas peças de Burrows e Fargion, apontando como a dupla se utiliza do jogo com a Tradição: ora citando-a, ora rompendo-a.
Em Critérios de Importância: isto não é importante, isto é importante?, Tiago Amate faz uma discussão sobre os diversos limites e as categorias de importância que cercam o dançar uma dança num festival. Começa o texto lembrando sua primeira experiência com o Festival Panorama, em 2014, para depois escrever com a obra de Vera Mantero tensões entre os gestos da bailarina e do filósofo, genderizando o lugar do discurso. Logo em seguida, parte para pensar limite e borrões entre corpos e malabares na obra de Sciarroni, Untittled. O que importa pensar sobre a experiência singular com essas obras?
Por fim, em Hu(r)manidade, Verena Than fala como a obra Hu(r)manos, do coreógrafo Marco da Silva Ferreira (PT), nos ajuda a pensar nos deslizes entre ser animal, ser humano e ser urbano.
*
Ufa! São muitos textos! – primeira coisa que pensei em escrever depois que terminei o parágrafo anterior. Sim, são muitos que se lançam a tantos outros textos e à memória. Os votos são de que os resíduos desde aqui enviados não meramente contribuam com a economia de preservação das obras, mas que nos ajudem a pensar o movimento de discursos que se abrem a outros discursos. O exercício ainda porvir é o de pensar esses textos críticos não mais como moedas livres que reproduzem ou restituem o valor das obras e referências citadas. Ainda há a crítica da crítica porvir.
Outra vez ainda… outra vez porvir.
Registro aqui também, mais uma vez, o meu enérgico agradecimento à parceria com o Festival Panorama, aos diretores, Nayse López, Renata Pimenta, Renato Saraiva e Santi Elias, e, em especial, a Juliana Lopes, Coordenadora do Programa Educativo do Festival, que esteve sempre junto, movimentando a coisa toda. Agradeço também as professoras do DAC-UFRJ, Flávia Meireles e Lígia Tourinho, e as estagiárias do curso de Teoria da Dança da UFRJ, Ana Carolina Conceição e Bruna Belem, que também fizeram junto, moveram a coisa toda. Muito obrigado a todxs!
Boa Leitura!
Sérgio Andrade
Coordenador geral do projeto Laboratório de Crítica. É Professor do Departamento de Arte Corporal da UFRJ, artista e pesquisador em Dança, Performance e Filosofia. Doutorando em Filosofia pela PUC-Rio, Mestre em Filosofia pela PUC-Rio, Mestre em Artes Cênicas pela UFBA e Licenciado em Dança pela UFBA. Colabora com o Programa Educativo do Festival Panorama desde o ano de 2012. Sua mais recente produção artística é a obra PEBA, como diretor e dramaturgista, realizada em parceria com Iara Sales e Tonlin Cheng.
[i] Bacharelado em Teoria da Dança, Licenciatura em Dança e do Bacharelado em Dança.
[ii] Desde 2015, o Laboratório de Crítica passou a ser um projeto permanente de extensão e pesquisa do Departamento de Arte Corporal da UFRJ, sob minha coordenação. As atividades do LabCrítica não se encerram com a participação no Festival Panorama. Encontros, grupos de trabalho, palestras e seminários são algumas atividades que realizamos no período anterior e posterior ao Festival.
[iii] Lígia Tourinho é Professora do DAC-UFRJ e no ano de 2014 coordenou a terceira edição do LabCrítica no Festival Panorama. No ano de 2015 também foi professora colaboradora do LabCrítica e ministrou a palestra Dramaturgias do Corpo para os participantes, além de acompanhar as discussões do grupo durante o minicurso.
[iv] O programa completo do LabCrítica 2015 pode ser acessado aqui: https://www.panoramafestival.com/wp-content/uploads/2015/10/PROGRAMAÇÃO-LABORATÓRIO-DE-CRÍTICA-2015_3.pdf
[v] Faço referência a Derrida, sobre o infinito do discurso virtual e o mutismo da obras espaciais. Ver DERRIDA, J. As Artes Espaciais. IN: ______. Pensar em Não Ver 2012, p. 17-62.
[vi] A palestra foi realizada pelo projeto de extensão Laboratório de Crítica, proferida na Semana de Integração Acadêmica da Dança, organizada pelo Departamento de Arte Corporal e o Centro Acadêmico de Dança (CADAN), no dia 26 de Outubro de 2015.
[/unordered_list]