Hu(R)manidade

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Verena Than

 

O espetáculo da companhia portuguesa que se apresentou nos dias iniciais do Festival Panorama, no Rio de Janeiro, Hu(R)mano, certamente chama à atenção por seus movimentos fortes, precisos e trilha sonora digna da melhor festa de música eletrônica. Mas, Hu(R)mano não é apenas sobre movimentos difíceis de execução – que se encontram também presentes no espetáculo –, ele fala de um lugar do ser, humano ou não.

 

Cabeças, a princípio sem corpos, se encontram, se tocam as testas e queixos, e em poucos movimentos se reorganizam. Aquele que estava embaixo ora se encontra por cima, ora no meio. E, não é assim que relações são? Humanas ou não?

 

Logo de início, ouvimos carros passando em uma rodovia pouco movimentada como em uma das grandes rodovias quase abandonadas de um imenso país. Em ritmo constante, sons instrumentais e cotidianos se misturam. Em contraposição ao hábito sonoro de uma cidade, o esquema corporal dos bailarinos parece estar falando de algo mais selvagem que civilizatório. Movimentos que lembram imagens de pássaros e répteis tomam a cena. Vemos as relações biológicas de cooperação e simbiose entre esses animais, vemos a caça e o medo. O hábito, a repetição, está ligado desta vez àqueles corpos-animais, que rastejam e murmuram.

 

No segundo momento do espetáculo, os corpos trocam sua carapaça animalesca por uma corporeidade humana – a fala, mesmo que inaudível, entra em cena – corpos bípedes gritam, contestam, reivindicam. O homem, o animal-racional de Aristóteles, aparece como o fim da linha de evolução. A força de movimentos precisamente sincronizados dá o ar de “Tempos modernos”. As engrenagens trabalham em conjunto, ao mesmo tempo em que, lutam contra algo que se encontra acima – os olhares estão sempre direcionados a uma diagonal alta, nesse momento -, contemplam com dúvidas e desprezam com rancor um “isto” superior. Quer seja deus, que lhes deu a condição humana, quer seja a “mão invisível” que controla suas vidas.

 

De súbito, todos os sentimentos se apazíguam. A música forte, intensamente marcada, retoma o ritmo lento e constante do início. O que tinha de homem construído e evoluído se desmonta. Os corpos-animais retornam e com eles, o riso – aquele outro aspecto definidor do homem-animal-que-ri. O riso pueril das crianças brincando. A criança, o mais animal do homem, aquela que ainda não conhece as regras do jogo, a que ainda rasteja pelo chão. O mais animal do homem, ou o mais humano?

 

 

Verena Than é carioca, filósofa e bailarina. Atualmente, estuda as obras do filósofo francês Merleau-Ponty, durante o mestrado em filosofia na PUC-Rio. Foca os seus interesses em corpo, fenomenologia, artes visuais, cinema e literatura.

 

 

 

 

Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2015.

 

Foto: Hu(r)mano, de Marcos da Silva Ferreira (C) CLAP[/unordered_list]