Fole, de Michelle Moura

muito muito muito bom porque
muito muito muito ruim
(como tudo nesta vida)
esta experiência esta ânsia este fluxo este incômodo este desconforto esta agonia esta angústia este corpo esta acústica
este repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir repetir
mas que nunca é igual
e dói e dói e dói quase o tempo todo senão o tempo todo dói
e ri e faz pirraça e geme e luta
(não sei do quê alguém da plateia ria se era uma tragédia completa)
e se joga se suja vai no chão quica volta
nunca que acaba
nunca
nunca
até que
tudo
vai
se
findando
findando
findando

e
fim

por Marta Peres

Inicialmente, apresenta-se uma pequena presença sobre o grande linóleo branco, que cresce à medida que inspira, expira, respira. Nesse simples movimento vital e orgânico que todos os seres vivos dançam – na sua frente mais de cem pessoas faziam essa mesma ação- se difere pelo seu ritmo, dinâmica e força. Não só respira, hiperventila e, como o instrumento que dá nome ao trabalho, a fole, produz vento. Assim, esse seu ritmo contamina o público, ou seria apenas a mim? Sinto que minha respiração também se altera e, por hiperventilar, provoca-me a sensação de vertigem, tontura. Me sinto, então, conectada ao seu estado fora de si, do seu descontrole controlado.

 

A respiração toma pulmão, circulação, coração, cabeça, diafragma, abdômen, braços, pernas, coluna… Ou seria o inverso? A hiperventilação pode ocorrer por consequência de um ataque de pânico ou ansiedade, ou seja, uma ação externa cria uma reação física interna.

Provocantes e provocados, causa e consequência, expansão e recolhimento, migra de um ponto de alta pressão para outro de mais baixa. Esse corpo é parte do seu entorno? Onde encontra-se o limite? A minha respiração afeta à dela ou só a dela que me afeta?

 

Provoca-se, por consequência a voz -uma língua outra – que nasce ou morre sufocada que comunica no gesto e na ação, (de)forma a dramaticidade, expulsa à força o que há dentro.

 

E é um corpo feminino que se apresenta, dessa forma, movimentos bruscos, um estado de violência e seus apelos sugerem uma leitura relacionada às opressões físicas e morais sofridas até os dias atuais por uma determinação de gênero e minoria ao feminino, assim, reage com a voz, a respiração, quer se manifestar, mas nem sempre seu apelo é para ser ouvido ou entendido. Seu manifesto ecoa pelo espaço, propõe novos ritmos, é manifesto mas também é festa, nas luzes, no corpo, celebra. E festa é manifesto, que convoca e reforça presenças e ausências, desloca, mobiliza.

 

(Mani)Festa também provocando seus limites. Apresenta no corpo linhas: delimita mas também desvela e borra. Mostra o seio, seu sexo e deforma as linhas, cria em si uma máscara, se marca e carimba o branco do chão. O faz com a boca, assim como o seu vento e seu som, quase engole a si para se transformar em outro ou demarcar ao seu mesmo. Escurece a si e o resto, não vemos, só ouvimos, sua presença em respiração ainda é presente mas é também um outro do qual não vejo, não controlo. A permanência no escuro, borra até a mim, quais são os meus limites e contornos? Fole também poderia ser moinho, ao transformar vento em energia de movimento.

 

por Monique Anny

Corpo-fole: a respiração é propulsora de desencadeamentos de fazer e ser levado a fazer, de violentar e ser violentado. Um início estático e em estado de espera é o prólogo para uma sequência respiratória ainda sutil, mas já hiperventilada que aos poucos se torna o ponto central de um grande sistema de retroalimentação de movimento, voz e a própria respiração. Em Fole, Michelle Moura explora esse sistema como construtor de esforço e ritmo.

 

A respiração foi escolhida como ponto de partida para o estabelecimento desse sistema de retroalimentação. Hiperventilação que responde ao todo, que altera o corpo e que se altera em si mesmo, gerando espectros de variações rítmicas em consonância ou dissonância com o desenho sonoro criado pela própria respiração e pela voz que aos poucos é incitada e torna-se um elemento crescente e tensivo.

 

O movimento é a força motriz primária da condição humana. Ações detalhadas, micromovimentos, curtos e pouco acentuados ascendem progressivamente e expõem um processo formativo de esculturas cinéticas. O aumento energético leva ao transbordamento, acentuado em voz e sua repercussão nela mesma e no corpo. Fole é, então, uma ferramenta de múltiplas respostas, ação e reação. Um corpo que reage. O estímulo gera resposta, que altera o estímulo para um estímulo outro desencadeador de uma nova resposta, sempre crescente, até que um turbilhão energético esteja formado e o espectador é coexperimentador da situação. O caráter energético é evidenciado pela progressão de nível que o corpo da bailarina experimenta: do chão ao nível alto, num corpo que se carrega para se manter de pé.

 

Trata-se de um trabalho majoritariamente tensivo, em que uma linha de tensão se estabelece no começo e se mantém em parábola até o fim, com intra-tensões que são construídas no tempo e no espaço. O espectador interage sensorialmente e emocionalmente na intenção de criar significações e sentidos, e se depara com infinitas possibilidades de ressignificação das ações de movimentos, sonoras, espaciais e fisiológicas. Um fenômeno que tem sua manutenção na atualização das ações e sensações entre o dentro e fora, entre o corpo que responde e solicita respostas.

 

Michelle propõe uma dança que acontece no limiar entre o controle do movimento e seu acontecimento involuntário, paradoxo entre mover e ser movida. Um campo de vibração e caos, no qual a tensão se estabelece no entre do fazer e ser levada a fazer. É o entre vivo que faz parte do todo, material ou não. Um composto complexo de substâncias internas, aparentes, matéria externa, forças transparentes e absolutas. Esse entre aparece como ponto de expansão para o surgimento do sistema de retroalimentação proposto pelo trabalho.

 

Ainda que intensamente corporal e sensorial, há uma dramaturgia que se constrói sobre um princípio de encenação do enigma, na qual há uma suspensão do acontecimento em constante atualização. Por todo o período em que Michelle está em cena há uma espera, um estado de carga e apreensão sobre o que está por vir, ainda que o tempo sucessor tenha uma composição similar e alterada dos instantes que o antecederam.

 

Fole deixa a plena defasagem e diferença entre mensagem ou informação intencionada pela artista e decodificada pela plateia e por ela mesma. Afinal, a dança não se propõe a explorar ou apresentar soluções ou argumentos logicamente completos. Nem tudo está dito, pois se estivesse não haveriam questões capazes de manter o interesse e a expectativa, ambos carregados de sensação, no interesse pelo que se pode vir a sentir ou vivenciar.

 

Há um elemento desorganizador, campo gerado pela montagem que não se articula de forma linear, mas que se instala sobre um princípio organizador. A performer transgride certos preceitos de coerência, a fim de colocar o expectador numa atmosfera alongada e ansiosa. Porém, Fole é uma criação coesa do início ao fim, numa plataforma coreográfica, vocal e respiratória.

 

Em Fole, a coreógrafa expõe uma relação de controle e descontrole, uma dança involuntária e controlada concomitantemente. Sistema de retroalimentação complexo, mas de princípio único: a respiração. Essa composição conduz a adentrar as possibilidades de violência experimentadas ativa ou passivamente. Fole é campo de identificação e questionamento, com intenções provocativas e expositivas.

 

por Ray Farias

Foto: © CLAP