É prudente não precisarmos saber se Pierre significa Pedro

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Carlos Eduardo Mello*

 

O silêncio paira na sala onde antes estavam a dialogar, tensionados, terapeuta e paciente. Ela olha em direção à parede, toda de vidro, a baía de Guanabara pela frente. “Eu queria estar naquele barquinho”. A expressão do seu rosto muda, lânguida como um barco no oceano. Ao longe, um pequeno barco justamente ganhava destaque na paisagem, encimado por um feixe de sol enquanto o restante do céu à vista nublava. Os olhos distantes da paciente, o pequeno barco, a sala, o feixe de sol, o terapeuta. A atmosfera, uma relação de proximidade e distância, ao mesmo tempo, entre a mulher e o terapeuta. A atmosfera. Esse alguém, no entanto, terá, certamente, entendindo alguma coisinha na sua vida[i].

 

Dois homens, num bar situado à esquina da Rua do Ouvidor, conversam e bebem após o expediente. Um bando de crianças passam de mesa em mesa vendendo balas e doces. A menina que vendia doces vem na direção de um dos homens estourando pedaços de um plástico bolha. “Que incrível estourar essas bolhas enormes, eu nunca tinha visto um plástico bolha com bolhas tão grandes”. “Toma um pedaço pra você, moço”, diz a menina, recortando com as mãos o plástico bolha. Ela oferece ao homem e vai embora com uma cara de satisfação. “Eu achava que ela ia me vender o pedaço de plástico bolha, ela me deu e foi embora sem falar nada”, disse o presenteado. Os dois homens enchem o copo, engolem seco, o plástico bolha quase chora. E o homem guarda o seu pedaço de alegria, infância, crueldade. A atmosfera. Um dia, uma noite, uma noite depois de chegar em casa, terá entendido alguma coisinha.

 

São aproximadamente 18:30. Entardecem os jardins do Parque Lage, onde começam a ecoar das caixas acústicas o som. A trilha se propaga escada abaixo até atingir o ouvido dos espectadores e, porque não, a grama, as folhas, as árvores e as pedras do jardim. Som alto, estridente, um discurso em francês com voz rouca. Explicações filosóficas a respeito de Baruch de Spinoza e a teoria dos gêneros de conhecimento ou modos de vida. Os francófonos identificarão com os ouvidos, os não francófonos com os olhos no texto traduzido:

“Tomemos o caso de alguém que vive no primeiro tipo de conhecimento, a maioria das pessoas. Por que digo a maioria das pessoas? Bem, é preciso ser muito otimista, porque nem sempre acontece, nem sempre acontece”.

 

Francófonos ou não, o texto em áudio é mais um dos tantos elementos que compõem a atmosfera. O que nem sempre acontece? A atmosfera, justamente, a obra. Ali está o corpo de Vera Mantero e a ambiência que sua obra dá a ver. O que podemos dizer do Pierre?, performance por ocasião apresentada no Festival Panorama de 2015. Entendamos francês ou não, estaremos em presença de um exercício de atenção que não nos é oferecido pela aula do filósofo Gilles Deleuze, um exercício artístico que não tem como objetivo responder a estas perguntas. No entanto, a obra de Vera explora linguagens não hegemônicas e torna possível a emergência de uma certa política das sensações. Podemos sentir Pierre, Pedro, Vera, o parque, através de conexões que a artista tece nesta obra. Nenhum dos elementos em cena vale por si só, mas é a relação que o corpo dançante de Vera estabelece com os elementos que fazem emergir uma atmosfera que propicia experiências singulares aos espectadores.

 

É aqui precisamente que pousa a força da obra da artista. As diversas linguagens que sua performance apresenta nos coloca um convite: o de acompanhar um corpo que busca conexões – com seu próprio movimento e com objetos que colocam entraves ou facilitadores ao gesto. Talvez em presença da performance de Vera não seja necessário compreender o idioma francês, muito embora as questões da tradução de idiomas de outros países apresentem relevância em alguns contextos. A questão aqui parece ser a de Vera possibilitar, dentro da consigna que a performance traz: um convite a estarmos atentos àquilo que produz, em nós, sensações diante de uma infinidade de gestos e objetos, enquanto Vera permanece, em relação, a dançar com todos os elementos cênicos.

 

Apreendemos, pelas conexões que a dança de Vera Mantero performatiza, o áudio da aula de Gilles Deleuze: que na superfície, que nesse tal primeiro gênero de conhecimento, tudo é demasiado cotidiano, mecânico, repetitivo. E que nessa superfície, vivemos jogados pra lá e pra cá, sob efeitos de sentimentos que o encontro com as coisas nos provoca. Superfície em que tudo é movimento, no chão, na grama. E lá está o corpo de Vera, alguns gestos aparentemente mecânicos, técnicos, mas principalmente sensíveis e atentos, compondo com objetos, obstáculos físicos, e, nas alturas das nuvens, lá em cima perto do sobrado, o som das ideias do filósofo francês desce, desce, e toma o corpo de Vera. E o corpo de Vera toma o som, as palavras, transformadas em dança. Na superfície do movimento todo de Vera, emergem partículas expressivas intensas. Aquilo que nem sempre acontece, pode acontecer.

 

Apreendemos também, através das conexões que a dança performatiza, uma incessante cadência de movimentos que, sucessivamente, podem vir a atingir cada espectador de modo singular. E aqui, aquilo que nem sempre acontece, pode acontecer. E os instantâneos que Vera dispara acontecem, singularmente, ou não acontecem. Já não importa isto, todavia pode acontecer. Aqui a força do trabalho de Vera, uma aposta nos estalos, nos irrompimentos de vida, de afeto, que seus gestos performatizam.

 

Porque nem sempre acontece a obra, a atmosfera, apesar de estarem ao nosso redor. Assim como podemos dizer que nem sempre acontece de a maioria das pessoas viverem instantes onde uma rara atmosfera vêm à tona, como um instantâneo que emerge e rompe a mecanicidade do cotidiano, das relações, das conexões. Instantâneos através dos quais algo de singular se vislumbra, algo se sente concretamente.

 

Na atmosfera das 18:30 já quase 19:00, ecoa a voz do filósofo, no entardecer escuro dos jardins. No meio do verde, ali está o corpo de Vera, persistente, um corpo que dança, gesticula e faz contato com os objetos ao redor do jardim. As pessoas, a grama, as folhas, as árvores e as pedras. A duração de Vera parece expressar isto: pode acontecer de não vivermos apenas na superfície, pois ela está cercada de conexões possíveis que fazem a vida diferir.

 

De lá de cima, de onde o som se projeta e rola escada abaixo abarcando a todos, já não faz sentido perguntar-se pela relação entre o discurso verbal linear da aula proferida e a dramaturgia do corpo de Vera que sobe, desce, gesticula, varia de tônus, faz relação com uma árvore e nela permanece com gestos intensos. Faz careta, sorri, arremessa uma pedra. Expande e contrai seus braços, multiplica relações corpo a corpo a objeto. Há cadência, há dramaturgia, mas são os corpos de Vera e os objetos, é a ambiência daquele momento que, em conjunto, haverão de secretar a dramaturgia daquele espetáculo.

 

Na exploração que o corpo de Vera faz, buscando relações de movimento com seu próprio corpo e em relação com as coisas que rodeia, a obra de Vera evidencia a atmosfera e, justamente, a raridade das conexões. Ela permanece, os minutos passam, os objetos passam, as variações de luz, passam, sábado, domingo, e ali está Vera. Ela dura. Aqui a potência da obra e da atmosfera que ela cria: uma aposta na permanência, tanto da artista quanto do público. Afinal, é preciso estar disposto a alçar uma outra modalidade de atenção, dessas na qual se pode, de repente, captar um instantâneo, dobrar o banal, o cotidiano e viver um sentir que preenche a existência de novo.

 

Em tempos nos quais as palavras se esgarçam – relação, conexões, sensação; em que as coisas parecem demasiado esgotadas ou demasiado óbvias, a obra de Vera nos traz uma oficina de afrouxar e tensionar relações, conexões, com o corpo e com as coisas, delas tentando extrair movimentos até que, de repente, surge um sorriso aqui, um choro ali, um dar de cócoras nas árvores. Instantâneos que trazem concretude as relações, o corpo em conexão.

 

No esgarçamento dos movimentos ordinários, funcionais, que respondem a necessidades cotidianas, e compõem nosso dia-a-dia, acontece, em algum momento, brotar um segundo gênero de conhecimento, diria novamente Deleuze – quando não se necessita perguntar-se pelo sentido das coisas para que elas ganhem legitimidade, mas brota a presença que preenche um corpo de cores afetivas. E nossos esquemas cotidianos levitam, suspendem, e o esquema sensório-motor funcional de nossos corpos dá lugar a relações, sentimentos, um instantâneo pleno, acontecimental.

 

Brotação de acontecimentos, acontece, e com eles a derrubada da hegemonia discursiva, do sentido, endereçando o corpo a linguagens não hegemônicas. É a partir do veneno dessa hegemonia que Vera Mantero encontra o antídoto para o incolor, inodoro e insípido das palavras, do demasiado mecânico.

 

Aqui, a reverberação que as artes do corpo endereça ao público encontra sua efetuação – o convite que a obra enseja ao público de experimentar durar com Vera. Para onde dirigir nossa atenção diante das movimentações de Vera, sob palavras arremessadas de um alto falante francês?

 

É nesse momento de desorganização da percepção, que a terra, as pedras, a grama, as árvores e o corpo dançante de Vera, em relação com esses objetos, poderá permitir uma suspensão de um movimento ordinário para provocar-nos exercícios de percepção. Como dirigir a atenção? Para o corpo de Vera? Para seu braço? Para suas caretas? As pernas abertas embaixo de uma árvore terão o sentido de um parto? Será necessário entender que Pierre é francês ou um papel tradutor que esclareça que Pierre é Pedro e que ele vive no ordinário movimento cotidiano de nossas incolores, inodoras e insípidas funcionalidades burocráticas e cotidianas? Vera desconecta a linguagem e o sentido em proveito de instantes de sensação. Políticas da sensação contra a hegemonia discursiva que dirige nosso cotidiano.

 

É melhor, então, não traduzir Pierre por Pedro. Ele é um recurso importante mas que não vale por si. As artes do corpo em Vera Mantero suspendem o apelo ao sentido. A produção de presença, do gesto desprovido de sentido, a durar em paralelo à reprodução da voz de um filósofo, produz um teste, uma brincadeira, uma brecha espaço-temporal nos nossos sentidos habituais. O corpo em movimento, fazendo núpcias táteis com seus próprios membros, com as pedras do jardim, com a grama e com a folha das árvores.

 

Algumas coisas podem e devem ser somente sentidas, aqui a força ética e política da. A atmosfera criada pelo desvio de um barco à deriva no mar, no silêncio de um consultório, e a expressão de alívio da paciente. O instante de partilha de um plástico bolha da menina que vende doces, a atmosfera de estranhamento que a infância carente partilha com um homem sentado num bar. Começa com a atmosfera – a ordem do indizível, que tradução alguma pode partilhar na conexão entre corpo, sensação, movimento e obstáculo. O estrangeiro… a baía de Guanabara de Caetano Veloso.

 

É prudente não traduzir Pierre por Pedro. A dança de Vera também acontece no silêncio entre as falas de Deleuze.

 

 

Carlos Eduardo Mello é pesquisador do movimento, corporeidade e subjetividade. Atualmente pesquisa as ideias de Hubert Godard, corporeidade e teoria e história da dança. Psicólogo pós-graduado em “Clínica e Subjetividade” pela Universidade Federal Fluminense, com especialização em “Terapia Através do Movimento” pela Escola e Faculdade Angel Vianna.

 

 

Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2015.

[i] Os trechos em itálico são traduções livres vertidas do Espanhol da aula do filósofo Gilles Deleuze, cujo título é LES COURS DE GILLES DELEUZE; Spinoza> 17/03/1981. A referida aula pode ser encontrada aqui.

 

Foto: O que podemos dizer do Pierre, de Vera Mantero (C) CLAP[/unordered_list]