Disponível para o jogo

[unordered_list]

Silvia Chalub

 

 

 

Ha! foi o mais intrigante espetáculo que vi durante a edição 2015 do Festival Panorama, prestigiado evento que, há 24 anos, traz à cidade do Rio de Janeiro peças de dança e performance contemporâneas.

 

O texto que apresenta o trabalho da coreógrafa e dançarina Bouchra Ouizguen, no programa do festival, diz que a obra aborda o modo como o corpo, a alma e a loucura são vivenciados no Marrocos. Diz também que ela estará acompanhada de outras quatro intérpretes, cantoras da tradição aïta, e que se inspirou nos versos do poeta sufi, Rumi, para criar Ha!

 

Essas informações despertam meu interesse. Não conheço as danças e os cantos marroquinos, apenas sei que normalmente os poemas sufis são cantados por homens.

 

As luzes do teatro se apagam, minha expectativa é grande, mas o palco continua escuro. Durante um bom tempo, tudo o que vemos são panos brancos que envolvem cabeças que se agitam para frente e para trás e, por vezes, se deslocam pela cena. Até que começamos a ouvir expirações rítmicas, algo guturais, algo como urros, que se expandem. O palco agora está todo ocupado por turbantes brancos e sons. Um ponto de luz surge na cena, semelhante ao fogo. Olho para o céu. Parece que o teto do teatro se abriu para o céu noturno. Como em um transe, sou chamada a entrar no ritual. Um pé dentro e um pé fora.

 

Para ir além das sensações que essa obra me causou e alcançar um olhar mais abrangente, procurei saber mais sobre a trajetória desse grupo. Encontrei pouca coisa.

 

Desde muito jovem, Bouchra Ouizguen pesquisa tradições populares marroquinas, cantos, oralidades e cerimônias rituais, em busca de materiais que possam ser “triturados e misturados”, como disse em entrevista para o canal do Festival Panorama no youtube. É a partir das parcerias que estabelece em suas andanças por todo o país que Bouchra recria um universo próprio.

 

A união de Bouchra com as cantoras aïtas de cabarés do interior do Marrocos resultou em um espetáculo potente forjado nos encontros e ensaios frequentes que duram quase uma década. A força de Ha!, segundo a coreógrafa, está calcada nas ações cotidianas dessas mulheres e dela própria, no modo como vivem. “Tudo o que dançamos existe ainda. Está nas nossas mãos, nos nossos pescoços, nos nossos cabelos, nos nossos gestos, nas nossas frases, naquilo que dizemos e no modo como vivemos”, disse ela ao jornal português Público.

 

É claro, porém, que o fato de estarem em um palco gera novas possibilidades de sentido aos gestos e às ações dessas mulheres. Os efeitos de luz e os cantos em árabe que cortam a escuridão e o silêncio trazem para o teatro algo de extraordinário. Também seus movimentos não se atêm às linguagens contemporâneas. Elas parecem cantar e dançar para se conectar com elas mesmas, conosco, com o tempo, o espaço e o sagrado.

 

Voltando à cena: aos poucos a luz do palco aumenta e vemos enfim os rostos e os corpos das cinco intérpretes. De repente paradas e caladas, percebemos o tempo enquanto elas respiram. O tempo é sempre alargado nesse espetáculo, exige disponibilidade do espectador, uma abertura para os sentidos. Seus corpos, completamente fora do padrão da beleza neurótica ocidental, e seus rostos maduros, marcados de vida, surpreendem àqueles que estão presos à estética do balé. Ali estão corpos e almas que se expõem com seus mistérios. Se isso é loucura, não sei. Tudo que posso e quero fazer nesse momento é estar disponível.

 

Logo, as mulheres recomeçam a se mover, unindo suavemente partes de seus corpos. Entrelaçam-se e criam formas. Seus movimentos nos remetem ao corpo e à dança como lugar do encontro, do afeto, da comunhão, do desejo, do erótico, do sensual. E ao corpo que ri, que gargalha da vida, e contagia algumas pessoas da plateia, que riem junto.

 

Uma frase do escritor moçambicano Mia Couto parece caber aqui, com perfeição: “Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso”.

 

A movimentação dessas mulheres, seus gritos, seus cantos remetem a uma ancestralidade, que alcanço como um vislumbre, um delírio. Um ritual onde estou presente e sou afetada, mas para mim um rito sem mito (pois o desconheço), um jogo. Elas jogam ali seus corpos e afetos; eu, daqui, jogo meus olhares e sentidos. Uma relação se estabelece assim.

 

 

Silvia Chalub estuda dança (prática e teoria) e participa do Laboratório de Crítica no Festival Panorama desde 2013.

 

 

Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2015.

 

Foto: HA!, de Bouchra Ouizguen | Cie O (C) CLAP[/unordered_list]