Antigone Sr. / Twenty Looks or Paris is Burning at the Judson Church (L), de Trajal Harrell
O primeiro dia do Festival Panorama 2014 foi encerrado com um Theatro Municipal um pouco mais vazio e muito mais feliz do que no início da noite. Antigone Sr. / Twenty Looks or Paris is Burning at the Judison Church (L), obra que se fez polêmica (também) em palcos cariocas, abriu as festividades do Panorama com muito Vogue no palco mais clássico da cidade. O coreógrafo americano Trajal Harrell trouxe para a cena um espaço imaginário onde a dança pós-moderna da Judson Church encontrou o movimento Vogue e, a partir dessas duas concepções estéticas de dança (e não só de dança), recontou a tragédia grega “Antígona” no palco do Municipal. Reações diversas marcaram a plateia durante a apresentação da controversa obra de Harrell. Dezenas de acentos vazios antes do fim da peça, mas centenas de corpos dançantes ao final da apresentação.
Antígone Sr. é uma das muitas peças de uma série onde o coreógrafo se debruça sobre o mesmo tema: o que teria acontecido se, em 1963, alguém do movimento Vogue tivesse encontrado os pós-modernos da Judson Church para dançar?
Com uma dramaturgia em spray, onde as ideias saem juntas de um ponto de partida, conectadas por um jato e espalhadas por esse mesmo jato, a ação se desenrola na medida em que cada participante da plateia se disponibiliza para tal, juntando as gotículas desse jato que é a obra. Harrell não traz nada pronto e é preciso paciência para acompanhar suas questões e seu modo peculiar de estar neste lugar que o público ajuda a todo tempo a construir.
São então trazidas para o palco dezenas de referências à cultura gay americana, referências à dança produzida na Judson Church e o tom do espetáculo é sempre divertido. São muitas as piadas que, pela primeira vez, segundo o próprio coreógrafo em fala antes do início do espetáculo, serão legendadas. Todavia, a tentativa de legendar um espetáculo tão dinâmico e repleto de altos e baixos no que diz respeito a conseguir a atenção do público, se torna falha por problemas técnicos e de adaptação do inglês para o português. Há muita informação a todo tempo e um espectador não tão familiarizado com a língua inglesa e com todo o conteúdo histórico e referencial que o artista traz, corre o risco de ficar perdido. E fica. O público se desinteressa por várias vezes, se insulta e vai embora. Principalmente famílias. A tão aguardada dança contemporânea acontece, sim, mas acontece também o gay em cena, a passarela, a moda e mais um monte de coisas que um público não tão acostumado com todas as vertentes e possibilidades da dança contemporânea acaba não alcançando enquanto elementos de construção dramatúrgica da obra e, literalmente, desiste de acompanhar. Por outro lado, quem fica se delicia com a técnica dos bailarinos e a com a versatilidade divertida de Harrell e seu corpo de baile nada usual e sempre provocador.
Ainda que entre altos e baixos de atenção, o público é levado a entrar num estado de performance junto com os bailarinos, que são nada menos que incríveis em termos de técnica e domínio do espetáculo. Um clima de espera e de tensão é criado por um elenco que não só dança, mas também canta, fala com o público e o insere no espetáculo. “Antígone Sr.” tem um tempo e um lugar próprios e os intérpretes dão esse caráter à obra ao nos inserem nela com maestria, dentro das possibilidades de cada um na plateia. Somos convidados a ser parte de um espetáculo vivo e em construção a todo momento. O figurino, a iluminação e as músicas de “bate cabelo” trazem a energia da festa para a cena e para um público que se levanta para dançar e ser espetáculo junto.
A obra se faz muito forte e potente enquanto escolha para integrar a programação do Panorama, visto que neste ano o festival trata de festa e é na festa, nos ballrooms gays da Nova Iorque dos anos 80, que o Vogue nasce. Porém, devido a sua longa duração (2 horas e meia) e ao alcance não tão fácil a todas as propostas trazidas, fica a dúvida quanto ao seu lugar dentro da programação. Quais são os pontos a serem considerados para trazer justamente peça tão delicada no primeiro dia do Panorama e no Theatro Municipal?
Estar no teatro, no Theatro Municipal, é uma escolha quase política e de legitimação; ainda se faz necessário dar visibilidade a movimentos como o Vogue, a coreógrafos negros, a trabalhos com temática gay e que se mostram atuais e urgentes. Harrell nos prova que, em seu vanguardismo, pode, sim, dialogar com lugares de reconhecimento consagrado, como o são a tragédia grega ou a dança pós-moderna da Judson Church, e obter êxito na construção de uma obra ousada, múltipla e incrivelmente original.
Trajal Harrell abriu a primeira noite do Panorama deixando algumas cadeiras vazias num teatro nada habituado com tanta ousadia e ineditismo de propostas e também trazendo para o público uma ideia do que será o Panorama deste ano: um lugar de diversidade e possibilidade. Para todos os públicos. Queer gostem, quer não.
por Gabriel Lima
Foto: © CLAP